Algumas das primeiras lições na minha vida

Outro dia eu estava me lembrando de algumas oportunidades que tive na minha infância de trabalhar o desapego. Devo avisar que esta leitura pode não ser tão leve quanto foram meus textos anteriores, porque o tema aqui não é desapego no sentido de saber dividir brinquedos. Brinquedos foram coisas que felizmente meus amigos dividiam comigo, já que eu mesma não tive muitos.
Meus pais se separaram quando eu tinha um ano de vida. Desde muito pequena eu tinha que passar todos os finais de semana na casa da minha avó paterna, onde meu pai a princípio deveria me encontrar, embora isso raramente acontecesse. Assim, durante a semana eu morava com minha mãe e meus avós maternos. Eu ia para a escola e passava o resto do dia com eles, enquanto minha mãe trabalhava em três empregos, para sustentar a nós todos. Sempre a admirei muito e queria passar mais tempo com ela, mas quando ela finalmente estava em casa, nos finais de semana, era eu que tinha que ir para outro lugar. Lidei com essa situação até completar 13 anos, quando decidi dar um basta. Passar sempre os finais de semana fora de casa me fez aprender muitas técnicas de sobrevivência, pelo menos no que diz respeito ao meu lado emocional.
Quando eu tinha 9 anos, a mãe da minha mãe faleceu subitamente. Foi um grande choque pra mim. Seu nome era Jaci, que significa “lua” em tupi-guarani, uma língua indígena brasileira. Ela era uma avó maravilhosa e um ser humano com um coração enorme, sempre ajudando outras pessoas. Hoje, quando eu olho pra lua, eu a sinto perto de mim, com seu sorriso, sua fala mansa e seu corpo quentinho e me sinto muito grata pelos 9 anos em que pude estar ao seu lado.
Por volta dos meus 16 anos, meu avô, então com 89 anos, ficou doente. Estive sempre muito próxima a ele, diariamente (exceto nos anos em que passava os finais de semana com minha avós materna), e então vivi intensamente seu sofrimento. Foi muito doloroso acompanhar todas as tentativas de amenizar as dores que ele sofria. Torcia muito para que ele conseguisse se livrar delas. Em poucos meses as coisas pioraram e ele foi para um hospital. Eu costumava visitá-lo todos os dias, e falava com ele, mesmo quando ele não conseguia mais se comunicar. Lembro que, antes disso, eu costumava ler os jornais ou revistas políticas de que ele gostava mas não conseguia mais ler.
Seu sofrimento se arrastou por semanas, a despeito de todos os analgésicos. Um dia, nossa empregada, que trabalhava na casa da minha avó desde que minha mãe era jovenzinha, me contou que foi visitar um curandeiro, na intenção de ajudar meu avô. Ele disse que meu avô estava mesmo sofrendo muito, mas não conseguia deixar esta vida porque a família estava extremamente conectada a ele, sofrendo com ele. O curandeiro aconselhou que alguém deveria dizer ao meu avô que ele tinha todo o direito de “partir”, se isso fosse o melhor pra ele, e que nós ficaríamos bem, que ele não precisava mais manter a responsabilidade por nós todos. Imediatamente senti que eu era a pessoa que deveria levar essa mensagem a ele, livrando-o assim de tanto sofrimento. Nós éramos muito ligados, e eu estava determinada a ajudá-lo.
Fui ao hospital, como de costume, determinada a entregar a mensagem. O assunto aqui é a tentativa de não manter vínculos… e eu ia dizer a uma das pessoas que mais amava no mundo, que ela estava “livre para partir”, pra onde ela quisesse. Embora eu não soubesse exatamente o que isso poderia significar, sabia que qualquer coisa seria melhor do que aquele sofrimento tão grande. Foi uma das coisas mais difíceis que já tive que fazer na vida.
Falei com ele durante um longo tempo, com uma calma e uma sinceridade que vinham do fundo do meu coração. Disse a ele que ele era amado pela família e pelos amigos, que ele havia feito um ótimo trabalho como provedor enquanto pôde, ajudando minha mãe a me criar, e suportando a provação daquela dor até então. E disse também que todo aquele sofrimento poderia cessar, se ele assim o quisesse. Depois de ficar segurando suas mãos por vários minutos, fui embora pra casa. Duas horas depois minha mãe chegou, soluçando. Nem precisei perguntar; eu já sabia. E também chorei. Embora eu estivesse triste por meu avô não voltar mais pra casa, senti um alívio – por ele e por nós – depois de tão difícil período lutando contra a dor. Ele sentia a dor diretamente; a gente (a família mais próxima), sentia por solidariedade. Finalmente o sofrimento dele havia acabado. Ainda tivemos que lidar com o luto, mas nada se comparava ao sofrimento pelo qual ele havia passado. Até hoje eu o amo, e sempre vou amar.
De maneira alguma quero que essas palavras soem como um lamento. Simplesmente queria compartilhar essas memórias que me ocorreram essa semana, e me sinto grata por poder observá-las de uma maneira diferente daquela época. Elas realmente fizeram de mim o que sou hoje. E isso é o que todos somos: o resultado de todas as nossas experiências em busca da realização dos nossos sonhos e desejos; mas a única coisa que realmente temos é o momento presente, portanto vamos torná-lo o melhor possível!
Procurei uma citação sobre esse último parágrafo e encontrei uma que combina muito bem, embora a página da web não mencione o nome do autor: “Um dia de cada vez – isso é o que basta. Não se lamente pelo que já passou, e não se preocupe com o que ainda virá. Viva o presente, e faça-o tão belo que mereça ser lembrado.”

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